O STF E O ESTADO PATRIMONIAL BRASILEIRO por Ivan Simões Garcia

Imaginem se o Estado brasileiro fosse um ser vivo. Diríamos que ele tem em suas entranhas o vírus PPP: Patriarcalismo, Patrimonialismo e Patronato (que alguns consideram adquirido de forma congênita e outros consideram herança dos genes paternos portugueses).

Este vírus vem desenvolvendo diversas mutações ao longo da vida do Brasil, adaptando-se às distintas formações socioeconômicas através da história.

Grandes intérpretes do Brasil analisaram os sintomas e o desenvolvimento da doença nacional, que, em apertada síntese, pode ser assim caracterizada:

1) Patriarcalismo – Poder familiar, orientador da ordem e das relações privadas, é concentrado na figura do senhor ou chefe autoritário, circundado pela família consanguínea, pelos agregados e escravos, resultante da estrutura social calcada no latifúndio agroexportador e no escravismo (vide Gilberto Freyre “Casa Grande & Senzala” e Oliveira Vianna “Populações Meridionais do Brasil” e “Raízes do Brasil” de Sérgio Buarque de Holanda). Essa autoridade senhorial privada e suas relações de dominação constituem a força social que acaba se estendendo para o domínio público como força política.

2) Patrimonialismo – Forma de organização do poder na qual grupos oligárquico-estamentais dominam os cargos do aparelho estatal a fim de consolidar seus interesses privados (privilégios) promiscuamente conjugados com os interesses públicos (vide “Os Donos do Poder” de Raymundo Faoro e “Instituições Políticas Brasileiras” de Oliveira Vianna)

3) Patronato – Modo de reprodução do poder através do clientelismo; na relação pessoal entre indivíduos baseada na troca de favores, intercambiando bens como proteção, compadrio, mandonismo etc.

Acresce Florestan Fernandes que essas características das elites e suas relações de poder político e social coexistem (sem grandes rupturas) com o desenvolvimento da ordem econômica capitalista, que gradualmente se enraíza no Brasil.
Trata-se de um modo próprio de acomodação das frações das classes dominantes, sob a forma de consórcio no qual a indiferenciação entre interesses privados e públicos, sempre readaptada, convive com a lógica capitalista de acumulação numa acomodada dinâmica competititva (daí v.g. a persistência do latifúndio e do trabalho escravo).

A responsabilidade de uma suprema corte num país como o Brasil é combater o nosso atraso, atualizando o país no sentido republicano da Constituição, através do julgamento dos grandes casos. Para tanto, é preciso conhecer o Brasil e sua elite há cinco séculos organizada no Estado patriarcal-patrimonial-patronal.

Entretanto, os doutos Ministros do STF, em muitos casos dedicaram anos de suas formações acadêmicas aos modismos germanófilos, francófilos e americanófilos, as vezes muito inteligentes, belos e especiosos, porém, incapazes de compreender a realidade brasileira, consequentemente infecundos para transformá-la.

O julgamento da ADI 1923 é mais um caso dessas abstrações liberais e modismos absorvidos do léxico dos gestores privados, amiúde com a cabeça formada lá fora: flexibilizar a gestão por meio de parcerias público-privadas, de gestão compartilhada entre poder público e sociedade (como se fossem coisas distintas e separadas).

A Constituição de 1988 propõe romper com essa tradição nefasta ao moralizar a Administração Pública com concurso público e licitação, formando a duras penas uma tecnocracia qualificada e protegida contra as intempéries do mandonismo patrimonial do grupo político da ocasião, sempre tentando erodir os princípios de impessoalidade, moralidade, publicidade (como, por exemplo, na Emenda Constitucional 19/98 e nas Leis 9.637/98 e 9.648/98).

Agora, os doutores do STF ao convalidarem a validade destes diplomas admitindo que a prestação de serviços públicos de saúde, educação, cultura, ciência etc. possam se dar por meio de contratações (convênios sem licitação) com entidades privadas, sem controle político da sociedade, que recebem dotação orçamentária: as Organizações Sociais (OS)

Na lógica da mercantilização desses serviços públicos, escancaram as comportas dos interesses de ordem privada que inundarão com mais fisiologismo, nepotismo, estamento (burocrático) e corrupção o aparato estatal, público.

Ai de quem necessita desses serviços públicos, sempre colonizados pelo domínio elitista-patrimonial, agora recebendo nova demão de tinta fresca que empolgou o Supremo.